Afinal o que proíbe a lei em relação ao pagamento em dinheiro

A lei deixou ainda muito por explicar sobre os pagamentos a cima de 3 mil euros

Há leis que não são tão esclarecedoras como parecem e a lei que restringe o pagamento a dinheiro a cima de 3 mil euros é uma delas

Foi a 23 de Agosto que passou a ser proibido a um residente em Portugal fazer pagamentos em dinheiro vivo num valor igual ou superior a três mil euros, ficando sujeito a uma multa que vai dos 180 a 4500 euros.

 

A confusão nasce do facto de a lei misturar várias terminologias. Numa parte fala-se em “pagamentos”, sugerindo que podem estar em causa apenas transacções comerciais. Noutro lado fala-se em “transacções de qualquer natureza”, um conceito que, para Serena Cabrita Neto (da PLMJ) e Pedro Pais de Almeida (da Abreu Advogados) é indeterminado e parece querer abranger todo o dinheiro que muda de mãos.

Se for esta a interpretação, a proibição de transaccionar em dinheiro vivo acima de 3 mil euros abrange por exemplo um empréstimo, mesmo que seja feito entre particulares, mas também uma liberalidade, um donativo, um presente que um pai queira dar a um filho.

O problema é que o próprio legislador – mais concretamente o PS, que no Parlamento, que deu origem ao diploma – diz o contrário. Em Março deste ano, quando questionado sobre o assunto pelo Negócios, o deputado socialista João Paulo Correia precisou que “a proibição aplica-se a todo o tipo de negócios, comerciais ou financeiros, incluindo-se no conceito de transacção os empréstimos entre particulares”. Já as transmissões gratuitas, como donativos e liberalidades, não são abrangidas, garantiu na altura.

Ou seja, o tal presente que o pai quer dar ao filho em numerário, ou mesmo a liberalidade de 14 milhões de euros como a que Ricardo Salgado recebeu de José Guilherme pode ser pago em notas, porque a Lei (pelo menos o seu “espírito”) não o proíbe.
Em que ficamos então? Independentemente das interpretações que o legislador e os juristas possam ter, quem irá fiscalizar a Lei é a Autoridade Tributária (AT). Cabe-lhe a si em primeiro lugar interpretar o seu sentido e, caso os contribuintes discordem, seguir para a via judicial.

“Há um problema de interpretação que tem de ser clarificado, seja pela AT, seja pelos tribunais. Até lá, uma actuação prudente aconselha a assumir que estão abrangidas todas as transacções”, considera Serena Cabrita Neto.

Pedro Pais de Almeida lamenta que estejamos perante “mais uma Lei que é publicada sem que os conceitos estejam definidos”. E, mais do que à AT, a responsabilidade pela sua clarificação cabe ao seu criador. “A AT vem interpretar tudo e mais alguma coisa mas a lei é que tem de ser clara. Não o sendo, tem de ser alterada, porque a interpretação da AT não é necessariamente a melhor”, alerta. Até lá, reinará a incerteza.

Uma lei impossível de fazer cumprir?
Um outro bloco de questões, já fora da esfera técnica, prende-se com a efectividade desta medida. “Quem controla o mútuo que dois particulares fizeram entre si? Até um determinado valor, eles podem ser feitos por documento particular, não precisam de escritura pública”, exemplifica Serena Cabrita Neto, para ilustrar o quão difícil será à AT sequer tomar conhecimento das operações que são feitas.

Pedro Pais de Almeida diz ainda que “causa estranheza porque é que a coima é tão baixa”. O diploma prevê uma coima entre 180 e 4.500 euros (e o dobro para pessoas colectivas), um valor que o jurista considera baixo se for comparado com a multa de 27 mil euros que o Regime Geral de Infracções Tributárias impõe às empresas que não disponham de uma conta bancária . “Parece que não se quer impor uma sanção a doer”.

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